A insegurança alimentar atinge com mais força um perfil específico da população brasileira, como aponta Rodrigo Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania: "São, sobretudo, mulheres pretas, mães de crianças de até 10 anos, muitas delas responsáveis pela criação dos filhos sozinhas". Essa realidade cruel é ainda mais evidente quando observamos a história de Cleonice Jardim, uma catadora de papelão de 42 anos, que, em Belém do Pará, luta para garantir o mínimo para sua família.
Cleonice, natural de Novo Repartimento, no interior do estado, migrou para a capital paraense em busca de uma vida melhor. No entanto, sua jornada revela um ciclo contínuo de vulnerabilidade, principalmente no que diz respeito à alimentação. "Tem mês que nada dá certo e a gente passa fome mesmo. Fome brava!" A falta de alimentos e o difícil acesso a recursos tornam sua realidade cada vez mais desafiadora.
Esse contexto de insegurança alimentar tem raízes em uma transformação social e ambiental, como explica Marco Antônio Lima, da Universidade do Estado do Pará (Uepa). "Muitas populações rurais perderam o estoque natural de alimentos do qual viviam, seja pela pobreza ou pelo desmatamento que afeta suas fontes de sustento". A migração das áreas rurais para as cidades médias e grandes do estado tem gerado uma sobrecarga em um sistema urbano já fragilizado.
De acordo com dados do governo federal, 5,5% dos domicílios em áreas rurais estavam em insegurança alimentar grave em 2023, enquanto em áreas urbanas essa proporção chega a 3,9%. Entretanto, as cidades do interior enfrentam uma situação ainda mais dramática, como exemplificado no caso de Parauapebas, onde as mulheres da periferia sofrem com a escassez de oportunidades de trabalho e remuneração baixa.
Essas mulheres, muitas vezes responsáveis pela sobrevivência de seus filhos, enfrentam ainda uma desinformação sobre seus direitos. Cleonice, por exemplo, nunca tentou acessar o Bolsa Família, pois acreditava que não conseguiria comprovar sua renda instável. Porém, como destaca Afonso, o Cadastro Único (CadÚnico) aceita declarações de renda provenientes de trabalho informal, o que pode abrir portas para programas de auxílio, como o Bolsa Família, que beneficia milhares de famílias em situação de vulnerabilidade.
A falta de informação e a dificuldade de acesso a serviços públicos são obstáculos adicionais que agravam a situação. A busca ativa por pessoas em risco, como reforça Afonso, se torna crucial para conectar essas famílias aos direitos e benefícios que lhes são devidos.
O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e outras organizações sociais têm se esforçado para ampliar o alcance de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que já distribuiu bilhões de reais em alimentos adquiridos da Agricultura Familiar. No entanto, especialistas como Laura Machado defendem uma maior eficiência no atendimento às populações em risco, além de uma abordagem mais próxima e direta.
Cleonice e tantas outras mães negras solo representam uma luta diária pela sobrevivência, onde a fome não é apenas uma questão de escassez, mas de um sistema que continua a excluir, marginalizar e silenciar aquelas que mais precisam. A busca por justiça social e igualdade deve ser uma prioridade para garantir que essas mulheres, que sustentam suas famílias com tanto esforço e dedicação, possam ter acesso ao básico: a comida no prato e a dignidade.
Fonte: BBC Brasil